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Uma solução ou um escândalo?
Pessoas de países ricos viajam para zonas desfavorecidas do planeta onde outras pessoas estão dispostas a ceder um rim ou um pedaço de fígado a troco de dinheiro. Para uns, é uma solução; para outros, é um comércio repugnante.
Propomo-lhe uma experiência. Vá ao Google e escreva “comprar rim” (ou “buy kidney”, em inglês). Em escassos milésimos de segundo, surgem no ecrã milhões de resultados: a maior parte será inútil; muitos outros, piadas grosseiras; alguns, infelizmente, serão ofertas verdadeiras de pessoas desesperadas que precisam de dinheiro e que colocam à venda um dos seus órgãos vitais em troca de somas que oscilam entre os 15 mil e os 100 mil euros, como se fossem simples peças sobressalentes que se pode permutar.
Desde que foi feito, em 1950, nos Estados Unidos, o primeiro transplante bem-sucedido de um órgão vital (no caso, um rim), a ciência avançou, permitindo tanto o aumento do número de intervenções como, sobretudo, da percentagem de êxito dos transplantes. Apesar disso, médicos e doentes enfrentam um obstáculo importante: a oferta de órgãos é insuficiente para as necessidades da população.
Estima-se que, todos os anos, um milhão de pessoas em todo o mundo precisa de um órgão, mas apenas uma em cada dez consegue obtê-lo. De facto, muitos chegam a esperar uma década para recebê-lo; mesmo em Espanha (país campeão mundial de dadores), entre seis e oito por cento dos pacientes que esperam receber uma doação morrem antes de se efetuar o transplante. Em Portugal, que ocupa a segunda posição na colheita de órgãos, a situação é semelhante. Noutros países, como os Estados Unidos, a percentagem aumenta e chega a alcançar os 30%. Por que será então que é tão difícil compensar esse défice? “A doa­ção tem de se produzir em condições muito especiais”, explica Rafael Matesanz, diretor da Organização Nacional de Transplantes de Espanha.
Nem todos são candidatos
O motivo para o desfasamento entre o número de mortes hospitalares e a menor quantidade de doações é que “as únicas pessoas que podem ser dadoras são aquelas em morte cerebral: nesse caso, o doente já não está vivo, mas o coração continua a irrigar de sangue os órgãos, os quais devem ser extraídos mal se produza o óbito; quando o coração deixa de bater, já não servem”, explica o médico. O problema é que menos de 1% dos casos correspondem ao exigido. Por outro lado, a doação constitui igualmente um processo muito complexo do ponto de vista logístico.
“É uma questão de organização. Há uma maior sensibilização de médicos e enfermeiros, em particular nos hospitais distritais, que possuem unidades de cuidados intensivos”, afirma, por sua vez, o cirurgião Linhares Furtado, que fez o primeiro transplante de órgãos em Portugal (um transplante renal com dador vivo), em 20 de Julho de 1969. Porém, em alguns países, tudo isso leva a que as taxas de doações sejam mínimas. É o caso geral na  Ásia, que concentra 60% da população mundial e, no entanto, é responsável por apenas 2% das doações a nível mundial. “Não desenvolveram uma metodologia para obter órgãos de cadáveres”, opina o dr. Matesanz.
Além disso, existe outra condicionante acrescida: nem todos os doentes podem ser transplantados. “Trata-se de substituir um órgão afetado por uma doença por outro saudável. Todavia, em função do tipo de enfermidade e das lesões que o paciente tenha sofrido, o transplante poderá ou não ser efetuado”, explica o especialista espanhol. Assim, uma pessoa com cancro do fígado é suscetível de ser transplantada; no entanto, se o tumor se espalhou ou produziu metástases, a opção é descartada.
No caso dos rins, apenas dois em cada dez doentes que seguem um tratamento de diálise podem ser submetidos a transplante (em Portugal, há atualmente cerca de 16 mil doentes em tratamento substitutivo da função renal: cerca de dois terços em diálise e os restantes já transplantados, e outros dois mil aguardam, em lista de espera, por um transplante). Nesse caso, o que há de errado em comprar um rim noutro país?
Embora a ideia possa parecer, à partida, mórbida, para algumas pessoas transforma-se na única saída, na solução. A escassez de órgãos, as longas listas de espera e o facto de poder ser rejeitado como possível recetor de um transplante faz encarar soluções alternativas, como “ir às compras” a zonas em vias de desenvolvimento, mesmo que se tenha de ultrapassar todo o tipo de princípios éticos.
A história, como explica o dr. Matesanz, repete-se sucessivamente: uma pessoa de um país necesitado vende um dos seus rins ou parte do seu fígado a alguém de um país próspero. “Trata-se de um dos grandes flagelos do século XXI, uma nova forma de exploração sofisticada, de gente pobre por gente rica. É abominável, ilegal e imoral, e temos de pôr-lhe fim”, acrescenta.
Situações extremas
Na China, no Paquistão, nas Filipinas, no Norte de África ou na América Latina, é relativamente fácil obter uma peça vital com o livro de cheques na mão, e é assim que se passa por cima das listas de espera por um transplante. Pouco tempo depois, o transplantado regressa a casa com um órgão novo e uma esperança de vida renovada. É aquilo que se denomina “turismo de transplantes”, uma atividade que proporciona, anualmente, entre cinco e dez por cento dos órgãos transplantados. A maior parte dos “turistas” são provenientes dos Estados Unidos, do Japão e de Israel, mas também há europeus, sobretudo ingleses, alemães e holandeses.
Comércio legal no Irão
O Irão é o único país do mundo em que a compra e venda de vísceras se encontra legalizada. Todavia, é tutelada pelo estado, apenas se pode efetuar em centros designados pelo governo e os recetores têm de ser cidadãos iranianos, pelo que quase não há listas de espera naquele país.
No mercado negro, os únicos órgãos vitais que podem ser provenientes de um dador vivo são os rins e o fígado. Pelo primeiro, paga-se cerca de 62 mil dólares na China e apenas 15 mil na Índia. O facto, tal como relata o jornalista norte-americano Scott Carney no livro The Red Market – On the Trail of the World’s Organ Brokers, Bone Thieves, Blood Farmers, and Child Traffickers, potencia o tráfico internacional de órgãos que desde há algum tempo prospera em países como a Indonésia, o Paquistão e o Kosovo.
Depois de passar cinco anos infiltrado naqueles países, Carney chegou a uma conclusão terrível: cada parte do corpo tem um preço e, ao contrário do que se possa pensar no Ocidente, este é tudo menos sagrado e está sujeito às leis da oferta e da procura. As redes ilegais operam em todo o planeta e colocam em contacto possíveis dadores com pessoas que necessitam de um transplante. Há mesmo “corretores” que oferecem listas para se poder comparar preços e que aconselham aos clientes o melhor lugar para a aquisição ficar mais económica. Além disso, os especuladores costumam agir como intermediários e ficam com a maior parte do dinheiro que os doentes pagam pela doação. Sem dúvida, um negócio bastante rentável.
A China é um caso paradigmático. Os órgãos que formam a oferta do mercado chinês provêm de presos condenados à morte, os quais não deram, seguramente, o seu consentimento. Assim, é possível obter dos réus executados corações, pulmões, córneas, pele, rins e fígados, cuja comercialização conta com a participação de polícias, juízes e médicos, assim como de dezenas de intermediários que operam em todo o país e recorrem frequentemente às centenas de páginas da internet especializadas na compra e venda de órgãos para atingir os seus fins.
O caso israelita
Em 2007, quando se tornou conhecida a proveniência dos órgãos que muitos estrangeiros tinham recebido em transplantes naquele país, registou-se uma grande agitação internacional. Embora o governo chinês tenha proibido na altura os transplantes a estrangeiros, o facto é que o controlo é escasso e o tráfico constitui, atualmente, um negócio pujante. “Is­rael é um dos principais compradores. Ali, por questões religiosas, quase não se verificam doações; além disso, como o transplante acaba por se tornar mais barato do que a diálise, têm seguros de saúde que pagam aos clientes o custo de obter um órgão noutros paí­ses”, indica Matesanz. Recorda um escândalo que se produziu, há alguns anos, em Istambul, quando se descobriu que uma máfia levava pessoas da Moldávia de autocarro até à cidade turca; ali, os médicos extraíam-lhes um rim para implantar em doentes israelitas.
Não foi, de modo algum, o único caso de tráfico de órgãos a ser descoberto e noticiado. Em 2008, a imprensa fez eco de um grupo que percorria os bairros pobres de povoações e cidades brasileiras, prometendo aos habitantes uma viagem com tudo pago até outro país, além de generosas somas de dinheiro e todo o género de cuidados médicos. Tudo isso em troca de um rim ou de meio fígado. Os pobres convencidos eram depois enviados para a África do Sul para serem internados em clínicas especializadas em transplantes, cujas salas de cirurgias recebiam cidadãos israelitas e norte-americanos dispostos a pagar fortunas em troca de um novo órgão.
Erradicar o tráfico
Em Portugal, todos os cidadãos são dadores de órgãos desde 1994, embora qualquer pessoa se possa dirigir a um centro de saúde e inscrever-se no Registo Nacional de Não-Dadores, uma opção escolhida por cerca de 37 mil pessoas, percentagem ínfima numa população de mais de dez milhões. Se a legislação portuguesa é claramente positiva, a Espanha quis ir ainda mais longe e também alterou o Código Penal, no ano passado, de modo a tornar ilegal viajar para fora do país para efetuar este tipo de cirurgia; fazê-lo acarreta responsabilidades.
Trata-se do único país do mundo que classifica como delito o “turismo de transplantes”. Embora quase não se registem casos do género, pois há muitas doações no país vizinho, “é frequente comparar o tráfico de órgãos ao da droga; no final, os grandes responsáveis são os estados, e a única forma de acabar com essa forma de vexação moderna é pedir responsabilidades aos cidadãos”, explica Matesanz, dando como exemplo a Colômbia. Há apenas alguns anos, o país era um paraíso para os turistas que precisavam de um dador, dado que existia um vazio legal por onde conseguiam escapar com total impunidade: “Havia mesmo páginas em hebraico a publicitar viagens à Colômbia para conseguir um transplante em pouco tempo”, acrescenta o médico. Após uma série de ações empreendidas pelo governo colombiano, foi possível travar o turismo de transplantes, apesar de o fenómeno estar agora a afetar países vizinhos. “Temos de agir em conjunto para erradicar este tráfico, a nova forma de escravatura do século XXI”, conclui o nefrologista.
C.S./I.J.

Portugal no pódio
Espanha, com 32 dadores por milhão de pessoas, é o líder mundial de transplantes, sendo responsável por 17,5 por cento de todas as doações de órgãos da União Europeia. Portugal ocupa um honroso segundo lugar, com 30 dadores por milhão de pessoas, mas possui mais de 10% de dadores vivos, o que não acontece em Espanha. Portugal também ocupa o primeiro lugar mundial no transplante de fígados e na colheita de rins em dador-cadáver. Em 2010, foram colhidos 926 órgãos em 37 hospitais portugueses e efetuados 893 transplantes, menos 35 do que em 2009: assim, foram realizados menos 22 transplantes de rins, menos cinco de pâncreas e menos dez de fígado. No entanto, aumentaram os de córneas e de coração: 24,1% e 6,4%, respetivamente. De acordo com a Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT), foram feitos, em 2010, 573 transplantes renais, o que contribuiu para uma redução de 8,6 por cento nas listas de espera e para contrariar a curva descendente iniciada neste indicador em 2007. Desde 1980, ano em que se começou a realizar regularmente transplantes de rim em Portugal, já houve um total de 9237 transplantes renais. No caso dos transplantes cardíacos, realizaram-se 558 desde 1986, com 50 cirurgias efetuadas só em 2010.

O mais desejado
Na maior parte dos países, os órgãos são obtidos de forma altruísta, tal como os tecidos do corpo, embora estes possam estar sujeitos a comercialização. Seja como for, as máfias nunca perdem uma oportunidade para fazer negócio.
Córneas, pele e ossos - Trata-se de tecidos relativamente fáceis de transplantar, pois não é preciso que o dador esteja vivo. Além disso, ao contrário do que acontece com os órgãos vitais, como o coração, o fígado ou os rins, não há restrições rígidas em termos de tempo. As córneas, a pele e os ossos provêm de cadáveres e, apesar de poderem ser comercializados, não circulam do mercado negro. No entanto, embora haja mais doações do que procura, ocorrem roubos esporádicos de córneas e ossos nas morgues.
Fígado - Embora esta glândula possa regenerar-se, certas intervenções ou doenças eliminam essa capacidade e tornam indispensável um
transplante. O fígado (inteiro ou parte) pode vir de uma pessoa viva ou de um cadáver. No primeiro caso, a recuperação do dador costuma ser um pesadelo; daí que não abundem os voluntários. Países como o Japão, que sofrem um défice de doações, são os que mais necessitam de efetuar este tipo de transplantes. Assim, procuram dadores, sobretudo na China e nas Filipinas.
Rins - Segundo a Organização Mundial de Saúde, realizam-se anualmente no mundo 70 mil transplantes renais, e um quinto dos órgãos provém
do mercado negro. Durante muitos anos, a Índia foi o “hipermercado” mundial deste e de outros órgãos. De facto, a povoação de Villivakkam é conhecida pelo nome de Kidney Village, devido ao número de habitantes que venderam um rim. Recebiam cerca de 800 dólares,  o equivalente ao salário de um ano inteiro. O recetor pagava cerca de 37.500: a diferença ia parar aos bolsos dos traficantes.
Sangue - Dada a sua grande capacidade de regeneração (o dador recupera o meio litro que doa em menos de um mês), o “ouro vermelho” não tem interesse como mercadoria. Todavia, até à década de 1970, havia em muitos bairros pobres das cidades centros de recolha que gratificavam os dadores. Atualmente, apesar de o tráfico de sangue ser proibido, a verdade é que há quem faça negócio disso em alguns países em vias de desenvolvimento. Na Índia, por exemplo, descobriu-se, em 2008, que havia máfias que se dedicavam a sequestrar pessoas para as reter e extrair sangue várias vezes por semana.

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