Os Dilemas depois da votação

 Manifestantes caminham em direção ao Congresso Nacional para protestar no dia em que a Câmara dos Deputados decide se aprova o processo de impeachment de Dilma Rousseff
Não existe, no regime presidencialista, o voto de desconfiança do Parlamento, que costuma derrubar premiês mundo afora. No nosso presidencialismo, um presidente da República só pode ser tirado do cargo pelo Congresso em caso de impeachment. A Constituição estabelece como condição para isso a figura do “crime de responsabilidade”.

Não se trata de um crime comum, como roubo ou assassinato, mas de um crime cometido pelo governante contra as instituições do Estado. Se o plenário da Câmara aprovar no final da tarde de hoje a admissibilidade do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff – o cenário mais provável –, o Senado passará a julgá-la não por corrupção, pela má qualidade do seu governo ou pela situação lamentável da economia. Mas por ter gastado dinheiro público sem autorização do Legislativo, como prevê a Lei Orçamentária.

Apenas o Congresso tem legitimidade para dizer se ela foi ou não culpada de crimes fiscais. Cada um de nós pode ter sua opinião pessoal a respeito. Mas quem tem o poder legítimo de julgá-la são apenas os representantes do povo, eleitos livremente, de modo tão democrático quanto a própria presidente da República – nem mais nem menos.

O Brasil já viveu um impeachment e nossa democracia saiu fortalecida dele. O processo contra Dilma tem sido conduzido até o momento sem nenhum tipo de ruptura institucional, com amplo direito de defesa ao governo e de manifestação para defensores e opositores do impeachment. Ele tem despertado, contudo, dúvidas pertinentes. Nenhum processo de impeachment é indolor. É preciso conhecer exatamente o preço a pagar por este.

A primeira dúvida a esclarecer diz respeito ao diagnóstico. O PT realizou ao longo dos últimos 13 anos um governo desastroso sob vários pontos de vista: na visão estatista da economia; no aparelhamento político do Estado; na disseminação de quadrilhas de corruptos a pilhar a máquina pública em nome de benefícios privados; na cisão da sociedade brasileira em “ricos” e “pobres”, “povo” e “elite”, “nós” e “eles”. Foi o partido político que mais soube se beneficiar do clima de bondade que sucedeu a redemocratização para tentar se perpetuar no poder.

Mas seria ingênuo, para dizer o mínimo, imaginar que o PT é o único culpado por nossas mazelas. Ou que haverá uma espécie de redenção nacional assim que o partido for tirado do poder. Boa parte dos entraves que emperram o Brasil estão gravados na Constituição de 1988, alguns até como cláusulas pétreas – Constituição que, por sinal, o PT se recusou a assinar, assim como não assinou a Lei da Responsabilidade Fiscal e tantas outras leis sensatas, quando tentava, na oposição, palmilhar seu caminho para o poder.

A mesma Constituição cidadã, que nos tornou uma democracia vibrante – com instituições independentes e ativas, como o Ministério Público, a Polícia Federal, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o próprio Congresso Nacional –, criou um sem-número de direitos e proteções sociais simplesmente impossíveis de pagar com a riqueza que geramos. O Estado brasileiro não cabe na nossa sociedade nem na nossa economia, independentemente do partido ou do grupo que ocupe o poder. Eis o dilema que será preciso resolver após a queda de Dilma.

É aí que entramos na segunda dúvida: será possível fazer isso? Primeiro, é preciso reafirmar que não haverá saída fora da democracia, nem da política como ela é. Por mais lenta, cheia de defeitos e solavancos, nossa democracia tem sido nas últimas décadas a fortaleza que tem impedido o Brasil de sucumbir. Feliz ou infelizmente, portanto, a resposta estará nas mãos dos futuros ocupantes do Executivo e dos atuais integrantes do Legislativo. É mais do que razoável duvidar da capacidade deles para isso.

O vice-presidente Michel Temer, sucessor constitucional de Dilma no caso de impeachment, tem até demonstrado serenidade e, num pronunciamento que vazou para a imprensa, transmitiu bom senso em suas palavras. Mas palavras infelizmente não bastam. O tipo de reforma necessário para nos livrar das amarras estabelecidas na Constituição de 1988 exige um grau de liderança política e credibilidade estranhos a Temer e a seu partido.

A habilidade de Temer para costurar acordos é uma distinta do espírito visionário que o momento atual pede. O Brasil atual exige um líder do tamanho dos premiês britânicos Winston Churchill ou Margaret Thatcher, capazes de convencer a população da necessidade de sacrifícios no presente para benefícios no futuro. Temer será esse líder? Dificilmente.

Seu partido também não ajuda. Tome o exemplo mais eloquente, os presidentes da Câmara e do Senado, em tese duas das maiores lideranças do PMDB. Eficiente na condução da atividade da Câmara, o deputado Eduardo Cunha é réu num processo por corrupção aberto pela Operação Lava Jato, em que sobram evidências para condená-lo. Apenas o fato de ter mentido a respeito de suas contas no exterior bastaria para condená-lo. Até esse momento, ele tem o direito legítimo de conduzir os trabalhos da Câmara, até mesmo a decisão sobre o impeachment. Mas sua credibilidade, diante dos desafios posteriores, é nula.

E no Senado? Pesam contra o par de Cunha, o senador Renan Calheiros, nada menos que nove inquéritos com todo tipo de acusação, que tramitam sob a supervisão morosa do STF. Vários outros parlamentares peemedebistas estão na mira da Lava Jato. Em matéria de denúncias de corrupção, o PMDB nada fica devendo aos petistas. Se Temer não se livrar dessa turma, seu governo será paralisado por um festival de novas denúncias. Mas ele fará isso? Com quem governará?

Por mais que nomeie um ministério de notáveis ou celebridades de reputação irreprochável, por mais que tente dar um rosto mais moderno a seu governo, por mais que procure se tornar um vetor daquilo que ele mesmo chamou de “pacificação nacional”, que garantia de governabilidade ele pode oferecer, se a Lava Jato continuar a todo vapor, se todas as denúncias que chegarem ao STF contra políticos forem adiante?

E chegamos, enfim, à dúvida mais importante. Que condição política Temer terá de governar tendo, de um lado, a espada da Lava Jato a pairar sobre os políticos de seu patido e, de outro, o caldeirão de petistas inflamados, novamente na oposição, bradando contra aos quatro ventos contra aquilo que chamam de “golpe”, fazendo o possível para retomar o poder em 2018 com mais uma candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva (desde, é claro, que ele também não seja preso ou condenado na Lava Jato). A confusão política é uma certeza.

Outra certeza é a calamidade econômica. A posição do Brasil no cenário global foi irremediavelmente prejudicada pelos 13 anos de governo petista. É um erro afirmar que viveremos, com a atual crise, uma nova década perdida. Na verdade, a oportunidade que perdemos é muito maior que dez anos. O período até a década de 2020 representava um bônus demográfico para o Brasil, um tempo de bonança que teríamos para cuidar da educação da população, estabelecer o grau necessário de eficiência no Estado, nos serviços públicos de saúde e transporte, para criar uma base de infra-estrutura que permitisse fazer nosso crescimento deslanchar em ritmo asiático. Essa oportunidade se foi nos 13 anos de PT – e não voltará mais.

Todo desenvolvimento agora será necessariamente mais caro e mais doloroso. O vigor de nossa democracia não cessa de nos supreender e o faz agora mais uma vez, no processo de impeachment contra Dilma. Mais do que nunca ele é necessário. Que ele nos proteja nos anos vindouros, que prometem ser ainda mais duros, ainda mais complexos, ainda mais íngremes do que estes dias intensos, turbulentos e nebulosos que temos vivido.

G1